segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Sessão Exclusão - mais um debate sobre homenagens, exclusões e perversão da história local

***Texto publicado em outro blog e agora compartilhado pelo autor aqui.

22/12/2011

Sessão Exclusão

Pessoal,

Estou compartilhando com algumas pessoas o meu questionamento quando a uma postura na divulgação da sessão do Amigos do Cinema que vai ocorrer hoje, 19/12. Recebi o convite e fiquei indignado com o que está dito. No final do texto escreveram assim:

Será uma forma singela [a sessão de cinema em Linha Santa Cruz, com o filme A Ferro e Fogo, a partir da obra homônima de Josué Gimarães, autor que aparece na foto acima] de lembrar a data da chegada das seis primeiras famílias de imigrantes alemães em 19 de dezembro de 1849, provenientes da Silésia e do Reno, na “Alte Pikade” (Picada Velha) como se denominava Linha Santa Cruz na época, iniciando-se assim a sua história e também de Santa Cruz do Sul e região.

Como assim “iniciando-se assim a sua história [dos ‘alemães’ na região] e também de Santa Cruz do Sul e região”??? Ou seja, estão dizendo que os “alemães” começaram TUDO por aqui, até mesmo a história da região? Na minha visão, trata-se da continuidade de uma mentira, de uma manipulação ideológica, uma ignorância sobre a historiografia local e regional – tudo isso misturado.

Não gostei. Até pode ser legal relembrar os antepassados e homenagear seus esforços, mas não precisavam insistir neste conto moral apologético à beira do racismo. Todos os outros grupos e personalidades “não-alemãs” são subalternizados, invisibilizados nessa “nossa história”. Meus vizinhos negros do bairro Linha Santa Cruz, as muitas famílias mestiças, os sem-descendência “germânica”, toda essa gente mais uma vez vai ser “catequisada”; ficarão “sabendo” que são párias e só chegaram depois de toda a maravilha estar pronta pelo esforço dos “donos da história”. Enfim, tudo aquilo que lutamos para relativizar, incluindo o que de fato é: há muito mais diversidade e vários outros grupos étnicos na construção da sociedade santa-cruzense.

Acho que o Amigos do Cinema estão envolvidos num tipo de comemoração que não faz jus a amplitude do cinema e as possibilidades de reflexão e criticidade que muitos filmes podem nos suscitar.

Abaixo, segue o “retorno” que enviei ao pessoal que me enviou o convite, além do texto completo do convite mencionado.

Até mais!

Iuri


********************



Muito boa iniciativa de fazer a sessão do Amigos do Cinema em Linha Santa Cruz. Bem como relembrar a trajetória dos imigrantes germânicos no RS e em Santa Cruz. Mas tenho que discordar de algumas alusões, em especial o que está dito na frase final do convite, ou seja, que a “chegada” (a palavra deveria ser “introdução”, por trata-se de um projeto de colonização do governo provincial) dos imigrantes “alemães” (em termos de designação, trata-se de uma outra imprecisão) teria iniciado “a sua história [dos imigrantes] e também de Santa Cruz do Sul e região”.

Não vou dizer que é uma inverdade, mas está muito próximo disso. Se não é fruto da ignorância, trata-se de uma manipulação ideológica, que subverte a historiografia e produz uma subalternização e invisibilidade a outros grupos e personalidades “não-alemãs” aqui do município e região. Uma enorme injustiça e violência simbólica contra quem também esteve aqui e desenvolveu Santa Cruz – antes da chegada de qualquer europeu do norte.

Para quem se dispor a estudar a história local para além das rasas narrativas apologéticas germanófilas, algumas à beira do racismo, saberá que a ocupação da região inicia-se com grupos indígenas, destacando-se os antepassados e os atuais kaingangs e guaranis. Especificamente, temos o Faxinal do João Faria, povoado bem anterior a colonização germânica. É ali que surge a cidade de Santa Cruz e onde são recebidos (após desembarcarem em Rio Pardo), os novos assentados europeus, contando, em suas primeiras levas, com subsídios do governo, incluindo cerca de 72 hectares de terra.

João Faria Rosa era um sesmeiro, cujos trabalhadores escravizados, parentela, agregados e famílias avulsas perfaziam o Faxinal. O neto de João Faria recebeu e acantonou no sobrado familiar os primeiros sem-terra germânicos, conforme registra Bittencourt de Menezes na publicação de 1914, “Município de Santa Cruz”. As primeiras vias e loteamentos rurais foram feitos com recursos públicos e realizados por técnicos e capatazes lusos e trabalhadores negros escravizados, entre outros trabalhadores humildes. Holandeses, belgas, russos, austríacos e até cearenses, entre outros grupos – além da miríade de pessoas de regiões que só mais tarde vieram a se tornar o país Alemanha e vizinhanças –, foram assentados ao longo dos anos. Quilombolas e indígenas continuaram existindo, buscando sobreviver a ocupação branca, conforme registro de historiadores como Jorge Cunha.

Por anos estamos lutando para que não se “patrole” e se perverta a historiografia em nome de orgulhos étnicos que, de tão “orgulhosos”, “esquecem” e subestimam todos os outros grupos e pessoas sem determinados sobrenomes e fenótipos. Acho que a associação de moradores, a escola e o Amigos do Cinema prestam um desserviço nesse sentido da integração e comunhão comunitárias, porque estão insistindo em homenagens sem lastro histórico verídico e completo, eivadas de ideologia e sentimentalismo étnico-racial. Há uma vasta e interessantíssima história das comunidade teuto-brasileiras que dá lugar a mixórdias artificiais, como já denunciou Flávio Koth, santa-cruzense professor da UnB, entre outros estudiosos sérios.

É o que eu penso. Abraço do

Iuri.


***Interessante que ninguém do Amigos do Cinema (nem quem me enviou o e-mail) se manifestou. Talvez ignoraram ou ficaram envergonhados... O pior é ignorarem. Acho que alguns simplesmente ignoram, porque têm uma posição sectária sobre o assunto e não admitem questionamentos, porque isso “abala as estruturas” – inclusive de suas personalidades, calcadas numa construção indenitária onde os “meus antepassados são os melhores mais importantes”.

***Muito obrigado pela atenção. Muito bom que houve uma reação ao meu comentário. O pior é o silêncio.

Copiei e "editei" o texto a fim de destacar o ponto onde (perdão) "a maionese desanda", na minha opinião. Não se tratava de nenhuma crítica ao filme em si, adaptação do livro do Josué, que li há anos e gostei muitíssimo - como várias outras "sagas gaúchas", caso de O Tempo e o Vento e, de alguma forma, o Videiras de Cristal, Quem faz Gemer a Terra, A Valsa da Medusa e Pequena História da Amor, os dois últimos escritos por santa-cruzenses, a Valesca de Assis e Wilson Müller , respectivamente, tratando diretamente dos teuto-descendentes aqui de Santa Cruz (fazem isso com enorme sensibilidade e fidedignidade histórica). Critique o Amigos do Cinema pontualmente, por estar "assinando" um convite que me indignou pela perspectiva histórica e social - uma luta que travamos coletivamente a mais de década.

Deixei bem claro que acho bacana e justo que se homenageie os antepassados e, obviamente, os teuto-descendentes aqui em Santa Cruz e região. Absolutamente nada contra o Amigos de Cinema fazer isso. Minha discordância, como disse, é pontual e se refere ao reforço, através de um convite, a um tipo de comemoração baseada em uma perspectiva germanófila, que afirma que os alemães iniciaram a história de Santa Cruz e região.

Quanto a "adjetivação raivosa" (gostei disso!) é completamente espontânea e a uso comumente nesses momento de indignação; tenho dificuldade em tolerar a repetição de uma abordagem germanófila - equivocada e geradora de exclusão. Tento minimante fundamentar isso, fazendo algumas alusões historiográficas e até citando obras e autores. Uma pena que possa soar pedante.

Talvez pudesse ser mais diplomático. E aceito de bom grado a dica e todas as suas ponderações no e-mail. Louvo a existência/persistência do Amigos do Cinema. Mas foi uma pisada na bola feia! Que bacana que houve esse reconhecimento. Agora é tocar para frente!


***Valeu! Como sempre, tuas mensagens são instigantes, inteligentes e humoradas - com aquela ironia temperando o papo.

Acho que a reação minha e de outros valeram para demonstrar que o debate sobre a etnicidade local está vivo e não se vai deixar passar afirmações absurdas todas as vezes. Acho incrível como há gente zelosa de uma descendência basicamente ficcional. Será tudo para se achar especial por conta de uns parentes maltrapilhos chutados por uma suposta pátria hoje tão amada??

***Como disse, uma lástima que meu comentário soe arrogante. Suponho que seja pelo tom professoral, impositivo. Faço citações e cobro conhecimento, embasamento. Talvez tenha que corrigir essa abordagem. Mas não deixo de pensar que, enquanto isso... muitos “ofendidos” não têm prurido algum em reproduzir militantemente uma versão do passado (ia quase dizendo uma farsa) apoiada (mal apoiada) acriticamente numa históra rala e apologética (várias vezes já denunciada), que é a matéria constituinte dos símbolos municipais ufanistas – como o hino local, a bandeira, os monumentos etc. –, e não a partir de dados historiográficos obtidos por pesquisa acadêmica ou ao menos com algum lastro documental consistente. E isso leva à violência simbólica, que poucos parecem se dar conta, tal a naturalização da situação. O fato de uma menina ou menino negros terem de cantar na hora cívica da sua escola um cântico de louvação à “bravura alemã” do “loiro imigrante” (trechos literais da letra do hino municipal germanófilo) não causa nenhum constrangimento àqueles que “cultivam suas raízes” sem considerar todos que viverem e vivem, influenciaram e influenciam concretamente Santa Cruz do Sul. Que tipo de relação se quer forjar com uma pseudohistória e culto cívico municipal com esse teor de exclusivismo étnico-racial?? Que sentimento de pertencimento se quer construir nos “não-alemães”?? Que alemão é esse “loiro imigrante”?? Uma imagem estereotipada e que já é uma aberração diante da miríade de gentes que se assentaram aqui na região a partir de meados do século XIX, vindos de um país que nem existia na época, a Alemanha? Por que se insiste nesse conto de orgulho, de desejo de se engrandecer às custas de uma presunção calcada na adulteração da história local? Quem ganha com isso?? Desculpa dizer, mas quem ganha com isso é a imbecilidade, onde se inclui o racismo. A riqueza da história cotidiana das comunidades de/com teuto-descendentes (que alguns ainda hoje colocam fora da categoria “brasileiros”, justamente porque se têm como “especiais”), com suas culturas multihíbridas já desde a Europa, é terraplenada por uma germanofilia de quinta categoria, que iniciou-se há tempos e teve seus surtos nas intencionalidades políticas de momentos – sejam estrangeiras (o pangermanismo, por ex.) ou locais, para (por ex.) justificar a adoção de candidatos com determinados perfis, rejeitando-se outros. Se alguém quer continuar tolerando isso e tendo cuidados “para não ofender” (mesmo que uma outra ofensa está sempre sendo perpetrada), tudo bem! Da minha parte, não consigo mais ouvir sem ficar indignado – ainda mais quando é proferida e reproduzida por pessoas com excelente acesso a múltiplas informações.

Postado por Iuri J. Azeredo às 12:20

Aviões agrícolas em Linha Santa Cruz: nem anjos e nem demônios

***Texto publicado em outro blog e agora compartilhado pelo autor aqui.

06/07/2011

Aviões agrícolas em Linha Santa Cruz: nem anjos e nem demônios

Mais uma vez, muito bacana a mobilização comunitária em torno da instalação de uma empresa de aviação agrícola no Bairro Linha Santa Cruz. Principalmente pelo seu aspecto geral, de contrariedade a intoxicações por químicos agrícolas, chamando a atenção de todos para os cuidados com o meio ambiente. Mas...

Confesso que já fui bem mais ferrenho “anti-agrotóxico”. Continuo com minhas restrições e preferindo sempre produtos orgânicos e uma agricultura ecologicamente correta. Sou até entusiasta de técnicas como a biodinâmicas, que têm uma outra abordagem sobre o solo, a vida vegetal e animal e suas correlações com o ser humano, o planeta e o sistema cósmico. Mas também observo que a indústria agro-química – até por pressão, e não por alguma consciência ambientalista súbita – já está tendo cuidados ambientais e cada vez mais direciona-se para a fabricação de produtos menos contaminantes do solo e das pessoas (de composição biodegradáveis, com menor toxidade e permanência no ecossistema etc.) – assim como deve e está acontecendo com todos os produtos fabricados e atividades humanas no planeta (e até fora dele!).

Em tese, a empresa de aviação agrícola que quer se instalar no aeroporto precisa ter todas as prevenções legais e licenciamentos dos órgãos competentes (e receber as devidas fiscalizações), além da responsabilidade social inerente a uma atividade do tipo, com tantos riscos. A mesma coisa deve ocorrer, por exemplo, com transportadoras de combustíveis. Caminhões-tanques contendo milhares de litros passam semanalmente por nosso bairro. Pressupomos que são empresas idôneas, licenciadas devidamente, sendo os veículos seguros e obedecendo todas as normas legais para evitar um acidente e consequente contaminação do solo pelo vazamentos de gasolina, álcool combustível, óleo diesel etc. – produtos altamente tóxicos e de uso poluente em nossos veículos (pelo escapamento do motor e vazamentos). Mas ninguém está pedimos o fechamento do Posto Wenzel (ou daquele que se localiza próximo a Linha Nova, além dos de Monte Alverne) por conta de um possível acidente com os depósitos e transporte dos líquidos inflamáveis; nem somos contrários aos veículos, oficinas, fábricas e revendas – mas somos favoráveis ao uso de bicicletas, por exemplo, e a criação de carros cada vez menos poluentes e de todos os cuidados para evitar acidentes e contaminações no transporte rodoviário, armazenamento em tanques e abastecimento nos postos.

Tenho receio de um certo obscurantismo ou “ideologização” do que é uma questão importante e causa justíssima. Por conta de um sectarismo do tipo “agroquímicos são do mal e então seremos sempre contras”, enxotamos empresas e abominamos técnicas de cultivo perfeitamente aceitáveis de um ponto de vista científico e ambiental. Químicos, engenheiros químicos, engenheiros agrícolas, agrônomos e mais variada e vasta gama de técnicos se dedicam à pesquisa de produtos para a “agricultura industrial”, tornando-a mais eficiente e menos letal. Confio num desenvolvimento ético, respeitando o meio ambiente e responsabilidade social com as gerações – “mesmo” nesta “ceara” da produção com herbicidas, fungicidas, adubos químicos etc. No atual modelo socioeconômicos, que – prevejo – perdurará por muitos anos, a agricultura em grandes extensões existirá e não prescindirá de técnicas agrícolas baseadas na ampla mecanização – como os aviões agrícolas – e insumos químicos.


*O próprio secretário do meio ambiente de Santa Cruz, em entrevista ao Riovale Jornal de 28/06/11, diz que “entende a preocupação dos moradores, mas a empresa possui todos os requisitos necessários para operar”. “Pedimos todos as licenças necessárias e todas atendem as exigências”, incluindo as da Fepam (Fundação de Proteção Ambiental do RS), “um dos órgãos mais exigentes que existe em nosso estado”, completa o secretário. Ou seja, a preocupação e mobilização do grupo é muito válida, mas as autorizações e precauções estão oficialmente atendidas para o funcionamento correto da empresa – assim como deve acontecer com o transporte, abastecimento e armazenamento em Postos de Combustível do bairro e seu entorno, estabelecimentos que trabalham diariamente com produtos tóxicos de alta periculosidade (inflamáveis e poluentes, inclusive).

**O fluxo de aeronaves já é em si algo que se faz com risco – assim como o é o transporte pelas ruas e estradas. Vazamentos de produtos poluentes dos tanques – ou no processo de abastecimento de combustível – e acidentes graves são hipóteses sempre presentes. Então, a instalação de uma linha aérea entre Santa Cruz e Porto Alegre deveria ensejar também uma mobilização... Na verdade, os pequenos e grandes aeroportos que conheço estão em áreas de uma densidade populacional cada vez maior (o Aeroporto Salgado Filho é um exemplo disso, outrora construído em área afastada da aglomeração urbana). Idealmente, deveriam ser construídos e mantidos em áreas com grande limitação de moradia e de outras instalações urbanas.


***Me disseram que a aviação agrícola é uma dos meios mais eficientes em termos econômicos e ambientais para pulverizações em grandes áreas.

Postado por Iuri J. Azeredo às 16:07

“163 anos de imigração” e muita gente esquecida

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28/12/2012

“163 anos de imigração” e muita gente esquecida

Iniciativas locais para relembrar o passado podem ser muito boas. O problemas são as apologias, que, ao mesmo tempo que louvam alguns feitos – esquecendo que, na história humana, também sempre há, em meio a virtudes, vilanias, perfídias, fracassos –, não se referem a complexidade dos fatos e subalternizam outros grupos, mesmo que sem a intensão deliberada.

Uma das complexidades patroladas por aqui é – só para começo de conversa – o do termo germânico. “Magicamente”, se homogeneíza e pasteuriza o que foi uma diversidade de povos europeus e outras singularidades de grupos, pessoas, contextos sociológicos, históricos etc. que empurraram milhares de pessoas para o Brasil a partir de meados do século XIX, para falarmos do início dos planejados assentamentos rurais aqui no Vale do Rio Pardo.

E qual o objetivo disso? Da homogeneização e pasteurização? Ora, fomentar o turismo... E, enfim, inconfessadamente, o (pre)domínio étnico-político no município, é claro!

Isso já foi exposto muitas vezes, mas o efeito ainda é pequeno e entristece ver-se o nível de nossa reinante mediocridade no campo historiográfico e simbológico, contradizendo até mesmo como hoje se estuda a história da Brasil e mundial no nosso ensino fundamental, ou seja, criticamente.

Recentemente, em um convite para um evento de “163 anos da Imigração”, que ocorreria em Linha Santa Cruz, o texto, ao reforçar o relato sobre a “origem germânica” da localidade – e por extensão (o “mito fundador”), de toda Santa Cruz do Sul – não menciona, por exemplo, que o primeiro nome conhecido de Linha Santa Cruz não é “Alte Pikade”, e, sim, Picada do Abel, referência ao tenente-coronel Abel Corrêa da Câmara, que, através de seu capataz, Delfino dos Santos Morais (MÜLLER, 1999), abriu a estrada (picada) entre o Faxinal do João Faria (povoado muito anterior a Linha Santa Cruz) com a região serrana, ligando, assim, esta parte do planalto com a cidade de Rio Pardo e o seu importante porto à época (MENEZES, 1914). E não esquecendo que toda a região era habitada, desde tempos imemoriais, por vários grupos indígenas (RIBEIRO, 1993) e, inclusive, o caminho da Picada do Abel foi traçado provavelmente com referências a trilhas indígenas usadas por séculos. Também o texto não menciona que o profissional que executou o loteamento rural de Linha Santa Cruz, um projeto do governo provincial do Rio Grande do Sul (financiado com recursos públicos gerados, inclusive, pelo trabalho escravo), tinha também um significativo nome, aludindo a uma inequívoca luso-descendência, o engenheiro Frederico Augusto de Vasconcelos Almeida Pereira Cabral (MÜLLER, 1999).

Há alguma homenagem ou mesmo leve referência a tais personalidades e aos trabalhadores acaboclado e negros que colocaram a mão na massa na abertura das primeiras picadas, pontes, os lotes e outras infraestruturas, incluindo muito especialmente em Linha Santa Cruz, a antiga Picada do Abel? Não, obviamente. E aí está a um reiterado exemplo da estratégia (consciente ou inconsciente) de reduzir a história santa-cruzense a uma apologia monoétnica, social e intelectualmente empobrecedora, além de traidora da verdadeira teuto-brasilidade, transformada na caricatura bizarra ao ser representada por coisas como a Oktoberfest (KOTHE, 2001).

Até quando vamos ficar contando a história e desenvolvimento de Santa Cruz de um jeito tão limitado, tão discriminador, tão deturpado? A Associação de Moradores de Linha Santa Cruz, promotora do evento alusivo aos “163 anos de Imigração” (19/12/12), tem dado provas de estar a serviço de tal “simplificação” bastante questionável. Sim, é possível e bom homenagear. Mas podemos pensá-la de um jeito mais abrangente, e de uma forma que realmente fomente a integração comunitária ao invés de uma germanofilia mal disfarçada, além de artificial.

Postado por Iuri J. Azeredo às 16:28

134 anos e muita história não contatada

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28/09/2012

134 anos e muita história não contatada

Aproveitando o “aníver” do meu município neste 2012 [já trancorrido], volto a uma reflexão recorrente:

Hoje comemoram-se 134 anos de Santa Cruz do Sul. A referência é a instalação em 1878 da Câmara de Vereadores, que, na época, fazia o papel de gestora do município, dando assim autonomia à comunidade, que começou como Faxinal do João Faria, originado na sesmaria que precedeu o povoado, constituído originalmente da parentela de João Faria, trabalhadores negros e outros agregados assentados na área, ainda em disputa com grupos indígenas.

O primeiro presidente da Câmara (que poderia ser chamado de prefeito) foi o “nome de rua” Tenente Coronel Brito (José Joaquim de Brito, para ser completo), o que também é um indicador de descendência étnica de famosos da então nascente cidade. E considerando a presença de povos indígenas, de quilombos e da ocupação do território por outros sesmeiros e posseiros luso-descendentes e mestiços de toda a ordem, a “presença germânica” e de outros povos europeus (poloneses, holandeses, belgas, italianos, portugueses etc.), a partir de 1849, aconteceu bastante depois da fundação do núcleo que deu origem a Santa Cruz, demosntrando a variedade de referências étnicas e geográficas a comporem a história e sociedade santa-cruzenses (até coloônia de ceraenses tivemos por aqui).

Interessante notar que o 28 de setembro não é um feriado municipal. Ao contrário de quase todos os municípios, que fazem seus feriados locais em datas que marcam uma emancipação administrativa, o feriado municipal em Santa Cruz é em 25 de julho, data que rememora o assentamento de colonos em São Leopoldo em 1824, e que se tornou data simbólica da teuto-descendência no Rio Grande do Sul. Ou seja, temos aí, na “opção” do “25 de julho” ao “28 de setembro” como simbolismo máximo (dado pelo feriado), mais um elemento que quer reforçar um exclusivismo étnico na conformação do município, “podando” absurdamente a sua origem bem mais longa (anterior aos primeiros imigrantes assentados no loteamento rural estatal em Linha Santa Cruz), diversa e complexa.

Por que disso? Por que da invisibilização ou subalternização de outras referências étnicas? Por que se ressaltar de forma acachapante uma só descendência? Por que seriam “melhores do que outros”? Por que trabalharam mais? Ou o quê?

E qual o resultado desse exclusivismo? Como se sente, por exemplo, crianças que cantam um hino que não fala nada de seus antepassados afros, indígenas, lusos etc (somente da "bravura alemã" do "loiro imigrante")? Que tipo de integração comunitária isso produz? Não há aí espaço para um sentimento de despertencimento, de que todos que não são (ou pareçam) “alemães” são estrangeiros, justamente aqueles que alguns chamam até hoje de “brasileiros” em oposição aos “alemães” (essa denominação tão simplista)? )? Somos, então, um "município alemão", anexo ao Brasil, como desejava o pangermanismo adotado pelo governo Hitler da Alemanha, e que muitos defenderam ardorosamente por aqui? Óbvio que isso é uma bobagem, mas que ainda parece ter ecos.

Que o 28 de setembro – sem feriado – sirva para ir mais longe na história do município e do processo de monopólio étnico já tão naturalizado em Santa Cruz!


*Sobre os povos nativos, são inúmeros os sítios arqueológicos comprovando a ocupação indígena no Vale do Rio Pardo desde muito antes do apossamento da região por parte de portugueses e espanhóis. Os espanhóis, por exemplo, através de missionários, fundaram reduções jesuíticas já nos anos de 1630 por aqui, uma delas no entroncamento do Rio Pardinho com o Rio Pardo, e que foi extinta na ação do bando de preadores de escravos indígenas por parte do famigerado (antigamente "herói" paulista) bandeirante Raposo Tavares.

Postado por Iuri J. Azeredo às 15:53

A história que emerge:negros e índios

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04/10/2012

A história que emerge:negros e índios

Esses tempos o prof. Olgário aqui da Unisc mencionou recentes levantamentos e estudos sobre quilombos aqui na nossa região. Poderiam estar demosntrando (com sempre dissemos) a presença negra de forma muito mais intensa no Vale do Rio Pardo, incluindo especialmente Santa Cruz do Sul.

Coincidentemente, semana passada, li numa National Geographic, edição do mês de abril passado, uma matéria muito bacana sobre quilombos em meio a Amazônia e outros pontos do Brasil. Me emocionou a leitura pela incisiva abordagem dos repórteres.

Destaquei o seguinte da reportagem, logo no início:

Às dezenas de milhares, escravos africanos, para escapar das condições do trabalho que os europeus lhes impunham em suas plantações e lavras de minérios, refugiavam-se em áreas controladas por índios. De norte a sul nas Américas, ex-escravos e indígenas fundavam povoações híbridas conhecidas, em inglês, como comunidades maroons, do espanhol cimarrón, ou fugitivo.

A complexa interação entre negros e nativos é um drama oculto que historiadores e arqueólogos só há pouco começaram a desvendar. Esse capítulo perdido deixou suas marcas mais evidentes no Brasil, onde milhares de comunidades vêm emergindo das sombras para reafirmar sua cultura mista e reivindicar a legalização da posse das terras que ocupam desde a era escravista. (p.74)

A matéria toda é encontrada no seguinte endereço (junto com fotos belíssimas, como é característicos das reportagens da NG):

http://viajeaqui.abril.com.br/materias/quilombo-terra-de-homens-livres

Aliás, comunidades de descendentes indígenas “perdidas” em rincões do Vale do Rio Pardo também ainda não são objeto de pesquisa da nossa academia. Já me deparei algumas vezes com situações inusitadas. Por exemplo, conheci numa formatura um rapaz, esposo da formanda, que trouxe toda a parentela para a janta de confraternização na sede do time de futebol de Linha Santa Cruz: todos, cerca de 15 pessoas, evidenciando em suas faces a descendência indígena (kaingang, provavalemente). E todos morando no interiorzão, em meio a peraus de Sinimbu... Como não reivindicam coisa alguma e só querem sobreviver com algum conforto básico, ficam lá “sem incomodar ninguém”, plantando, caçando e biscateando em propriedades nos arredores. E, por tal invisibilidade social, sem que se reconheça e valorize a rica diversidade da população que se assentou e assenta em nossa região desde tempos imemoriais!

Postado por Iuri J. Azeredo às 13:29

Bem mais poloneses do que alemães: a primeira leva de imigrantes em Santa Cruz

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26/10/2008

Bem mais poloneses do que alemães: a primeira leva de imigrantes em Santa Cruz


Dias atrás, revendo um artigo sobre a história santa-cruzense, que está disponível no site da Prefeitura Municipal de Santa Cruz do Sul, me voltou a chamar a atenção aquilo que o estudioso das questões da etnicidade, Cláudio Ferreira, vem argumentando, ou seja, que, a rigor, os primeiros imigrantes em nossa Santa Cruz do Sul simplesmente NÃO ERAM de nacionalidade alemã, já que, como país, a Alemanha não existia até 1871. Sequer se pode alegar que, “sim, eram alemães os primevos, porque houve, posteriormente, uma unificação de territórios, dando-lhes um pertencimento nacional único”.

Vejamos o caso dos colonos da primeira leva, de 1849, "os pioneiros" – homenageados com o nome em bronze no “Monumento ao Imigrante Alemão”, ali no entroncamento das ruas Marechal Floriano e Galvão Costa. Tirando um da Prússia, hoje Alemanha, os demais assentados seriam da Silésia [reprodução ao lado de mapa antigo - divulgação], hoje Polônia. Portanto, considerando os países em sua conformação atual, seriam apenas 1 alemão e 11 poloneses...

É dito literalmente no texto que mencionei: “[Os] primeiros 12 imigrantes foram os seguintes: Augusto Wuttke (42 anos), católico, moleiro, sua mulher Francisca (33) e os filhos Guilherme (14), Joana Maria (13), Lucas (6) e Juliana (4); Frederico Tietze (28), evangélico, moleiro, e sua irmã Carlota (30); Augusto Raffler (26), católico, lavrador; Gottlieb Pohl (29), evangélico, lavrador; Augusto Arnold (43), evangélico, lavrador; e Augusto Mandler (30), evangélico, lavrador. Com exceção deste último, que era prussiano, todos os demais eram naturais da Silésia, território hoje pertencente à Polônia.”

Independentemente dos territórios específicos de onde essas milhares de pessoas tenham provindo, tratam-se de regiões da Europa que sofreram ao longo do tempo diversas alterações de denominação, domínio e sistema político, vínculo pátrio e conformações étnicas ditadas por migrações, invasões, ocupações, expurgos, guerras, ciclos econômicos etc. Imagine-se a enorme e constante fusão de culturas, línguas, hábitos, religiões e outros elementos dessas gentes bem antes de serem assentados no Brasil.

A região da Silésia é exemplo disso. Com provável origem na sedentarização de antiguíssimas tribos eslavas, até povos mongóis lá estiveram em 1241, sendo que, a atual conformação político-geográfica e composição étnico-cultural da região, só começou a se estabilizar após a 2ª Guerra Mundial, ainda sofrendo alterações com a dissolução e fim do domínio da União Soviética na vizinhança, há menos de duas décadas.

Reflita-se: aqui em Santa Cruz, estes grupos já diversos e, cada qual, formados numa diversidade anterior, diversificaram-se ainda mais em casamentos e convívios interétnicos com outros imigrantes, migrantes e nativos. Considere-se – já de saída – que, desembarcados no porto do Jacuí, abrigados pela municipalidade rio-pardense e conduzidos por tropeiros locais, esses primeiros grupos de colonizadores da Europa Central chegavam a um povoado já estabelecido, o Faxinal do João Faria, núcleo original da cidade de Santa Cruz. Conforme o artigo, “Na área do Faxinal, havia então quatro moradores [com provável parentela, agregados e escravos]: Gregório Silveira, José Rodrigues de Almeida, o vendeiro Agostinho Antônio de Barros, além de descendentes do sesmeiro João Faria da Rosa”. O neto deste antigo proprietário, de onde derivava a denominação do Faxinal, “cuja residência se localizava na região alta da atual rua Marechal Floriano, [foi] quem [abrigou e] transportou [os colonos] até o local dos seus lotes, na Picada do Abel [hoje Linha Santa Cruz]”. Somem-se, ainda, os caboclos, aquilombados e índios que estavam e circulavam pela região, conforme os registros historiográficos – aliás, pouco considerados, dando lugar à reprodução de mitologias obtusas.

Quer dizer, há – desde os primeiros momentos – contatos e convivências com grupos e indivíduos lusos, negros, mestiços já fixados em Santa Cruz e pela região, formatando paulatinamente nessas comunidades uma etnicidade peculiar, que talvez a expressão “teuto-brasileira-santa-cruzense” seja a menos problemática para identificar. Infelizmente, tais características próprias, singulares são constantemente pervertidas pela “importação de tradições” de um folclorismo da Alemanha contemporânea. Isso é notável em eventos como a Oktoberfest. Ao invés de uma comemoração da teuto-brasilidade local, temos a tentativa de um cultivo de uma germanidade postiça, caricata, comercial, que, como disse o professor Flávio Koth, pouco tem a ver com os lugares de origens dos imigrantes. E ainda menos com a cultura híbrida desenvolvida entre gentes vindas de muitos lugares que se encontraram pelas picadas e povoados que constituem hoje Santa Cruz do Sul.

Postado por Iuri J. Azeredo às 17:53

Moratória para os loteamentos em Linha Santa Cruz

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12/04/2011

Moratória para os loteamentos em Linha Santa Cruz

Quero dar os parabéns às lideranças comunitárias pela mobilização em torno do desafogamento e segurança no trânsito pela RSC-287 em Linha Santa Cruz. Realmente, a situação é caótica e flagrantemente fere direitos básicos do cidadão.

Mas acredito que além do DAER, além das autoridades estaduais, caso de secretários e deputados, precisamos também trazer à responsabilidade às autoridades municipais – afinal, trata-se do trânsito e da segurança pública em nosso município e envolve direta e indiretamente vias públicas sob responsabilidade da administração santa-cruzense.

Uma medida concreta da prefeitura, para que a situação não se agrave e continue a vitimar pessoas, trazer prejuízos materiais e morais aos munícipes (o estresse diário com os engarrafamentos, por exemplo), é NÃO mais autorizar a abertura de loteamentos (ou a expansão dos já instalados) em Linha Santa Cruz enquanto não se se tenha a infra-estrutura de locomoção plenamente garantidas no bairro.

Outro ponto: os donos de terras e loteadores – entre outros – ganham um bom dinheiro com a expansão imobiliária. Tais negociantes também precisam ter responsabilidades. Para além de oferecerem um terreno ou casa, é preciso oferecer condições de ir e vir às residências com tranquilidade. “Atulhar” de loteamentos, vender “a varrer” terrenos e casas implica em aumentar o número de pessoas no bairro, que deve ter condições de atender todas as necessidades derivadas desse aumento populacional.

Aliás, a falta completa de áreas de lazer, praças e parques é algo também lamentável para um bairro de 4 mil pessoas. Penso que, de novo, os loteadores e prefeitura já deviam ter estabelecido algum tipo de acordo para garantir áreas descentes para as crianças, jovens e adultos terem um lazer social saudável todos os dias, em especial nos fins de semana.

Talvez a associação de moradores pudesse pressionar, levantando essa proposta de “moratória” nos loteamentos do nosso bairro. Entrementes, acho que todo cidadão pode, por seus meios, “fazer alguma coisa”.


***A prefeitura mobiliza-se para que seja instalada uma linha de avião entre Santa Cruz e Porto Alegre pelo Aeroporto Luiz Beck da Silva. Muito bom. Mas com a atual atrofia no trânsito no Bairro Linha Santa Cruz, os horários de voo não poderão ocorrer em torno das horas de “rush”, quando a fila de carros parados ultrapassa a entrada do nosso aeroporto. Caso isso não se resolva, passageiros e tripulação terão vários dessabores, com atrasos, constrangimento e, quem sabe, inviabilidade de manutenção da linha aérea. Além disso, o fluxo no aeroporto será mais um atravancamento para os próprios moradores do bairro, aumentando o pesadelo de quem precisa trabalhar, estudar, fazer compras etc. fora de Linha Santa Cruz...

Postado por Iuri J. Azeredo às 13:34